A complementação do ICMS ST no Rio Grande do Sul

  1. Do conceito de Substituição Tributária

Nos termos do art. 121 do Código Tributário Nacional – CTN, sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária. Em regra, o contribuinte será aquele com relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador.

Todavia, o art. 128 do CTN admite que a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação. Neste caso, pode ser feita a transferência total da responsabilidade do contribuinte ou apenas em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.

Ou seja, a substituição tributária pode ser dividida em duas situações.

No primeiro caso, com a substituição propriamente dita, o substituto em sentido estrito é o que sofre a substituição definitiva. Desta forma, a responsabilidade é transferida integralmente ao substituto, de modo que o contribuinte originário não precisa mais se preocupar com a apuração do tributo.

No segundo caso, existe um chamado Agente de Retenção, que é alguém que faz uma retenção financeira envia-a ao fisco, como um mero adiantamento. Ou seja, desta retenção ainda cabe o ajuste por parte do contribuinte originário. Embora exista alguém que faz a retenção por conta, o contribuinte continua a ter que prestar contas ao fisco. Não há, neste caso, portanto, uma substituição propriamente dita.

Quando se fala em ICMS ST, o que ocorre é uma substituição do sujeito passivo. Ela pretende que um contribuinte que praticou o fato gerador não tenha que recolher o imposto, mas que isso deverá ser feito por alguém relacionado com o negócio. Ou seja, alguém da cadeia produtiva.

Portanto, a Substituição Tributária nada mais é do que um sistema centralizado de incidência de ICMS.

Esta forma de recolhimento possui bases constitucionais no §7º do art. 150 da CF/88, que fala que a lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Isso quer dizer que apenas lei poderá fixar as hipóteses de ST. Da mesma forma, indica a possibilidade de um ajuste de contas nos casos em que os fatos geradores não se deem da forma como presumida pela sistemática de cobrança.

Ao contribuinte, a principal vantagem da Substituição é a diminuição dos riscos de práticas de concorrência desleal envolvendo a sonegação do imposto. Na medida em que a cobrança do ICMS da cadeia é unificada em um único ponto, reduz-se drasticamente a possibilidade de sonegação nas operações, de modo que nenhum dos concorrentes poderá reduzir seus custos através de sonegação do ICMS.

Para operacionalizar a ST, presume-se uma quantia da chamada Margem do Valor Agregado – MVA. Trata-se de uma presunção construída através de uma pesquisa, em tese, ampla e publicada. Acontece que, em uma economia livre, os preços tendem a variar, de modo que a MVA calculada não irá se aplicar da mesma forma a todos os agentes econômicos. Além disso, nem sempre esse cálculo segue o devido rigor, e acaba com uma MVA que não é a mais adequada ao setor. Assim, o Estado, as vezes, presume uma base demasiadamente alta, o que acaba sendo uma majoração velada de tributos, ou demasiadamente baixa, abrindo mão de uma tributação devida.

Este é um dos principais pontos de crítica da Substituição Tributária, pois um mero erro de cálculo pode resultar em oneração de determinados setores, e desoneração de outros.

E ainda que exista formas previstas para a correção destas distorções, na prática, tal correção não acontecia.

Historicamente, ainda que seja reconhecida como devida a restituição do ICMS cobrado a maior em razão de ST, a ação de restituição costumava esbarrar em um requisito de legitimidade.

Em suma, o substituto paga o ICMS do substituído. Assim, diante do comando do art. 166 do CTN, a repetição do indébito tributário é de responsabilidade do contribuinte de direito (substituto). Para o Supremo Tribunal Federal – STF, o entendimento que predominava era de que, a restituição dos valores pagos a maior, deveria ser autorizada pelo contribuinte de fato (substituído) ou deveria o substituto provar que assumiu o ônus, o que, na prática, dificilmente acontecia, pois não há vantagens imediatas ao substituído em dar esta autorização.

Isso foi alterado com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 593.849/MG.

 

1.1. Do julgamento do RE n. 593.849/MG.

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) conheceu e deu provimento ao Recurso Extraordinário n. 593.849, alterando algumas regras de substituição tributária pertinentes ao imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS).

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ICMS. SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA PROGRESSIVA OU PARA FRENTE. CLÁUSULA DE RESTITUIÇÃO DO EXCESSO. BASE DE CÁLCULO PRESUMIDA. BASE DE CÁLCULO REAL. RESTITUIÇÃO DA DIFERENÇA. ART. 150, §7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. REVOGAÇÃO PARCIAL DE PRECEDENTE. ADI 1.851.

  1. Fixação de tese jurídica ao Tema 201 da sistemática da repercussão geral: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”.
  2. A garantia do direito à restituição do excesso não inviabiliza a substituição tributária progressiva, à luz da manutenção das vantagens pragmáticas hauridas do sistema de cobrança de impostos e contribuições.
  3. O princípio da praticidade tributária não prepondera na hipótese de violação de direitos e garantias dos contribuintes, notadamente os princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco, bem como a arquitetura de neutralidade fiscal do ICMS.
  4. O modo de raciocinar “tipificante” na seara tributária não deve ser alheio à narrativa extraída da realidade do processo econômico, de maneira a transformar uma ficção jurídica em uma presunção absoluta.
  5. De acordo com o art. 150, §7º, in fine, da Constituição da República, a cláusula de restituição do excesso e respectivo direito à restituição se aplicam a todos os casos em que o fato gerador presumido não se concretize empiricamente da forma como antecipadamente tributado.

[…]

  1. Recurso extraordinário a que se dá provimento.

(RE 593849, Relator(a):  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/10/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-065 DIVULG 30-03-2017 PUBLIC 31-03-2017 REPUBLICAÇÃO: DJe-068 DIVULG 04-04-2017 PUBLIC 05-04-2017 – grifo nosso)

 

 

Assim, foi reconhecida a possibilidade de os contribuintes substituídos requererem a restituição da diferença de ICMS recolhida a maior, caso o preço de venda das mercadorias seja inferior àqueles calculados via MVA, ou caso não se realize o fato gerador.

Um dos principais argumentos para a fixação desse entendimento foi o princípio da vedação ao enriquecimento ilícito. Foi assim que alguns Estados passaram a interpretar tal precedente não só como um dever junto ao contribuinte para restituir os valores pagos a maior, mas também uma autorização para efetuar a cobrança dos valores recolhidos a menor.

 

  1. A complementação do ICMS

 

Por analogia, os Estados entenderam ter o direito de receber a diferença, também, do ICMS pago a menor, ou seja, quando base de cálculo presumida do imposto foi inferior ao preço final efetivamente praticado.

Todavia, tendo em vista que o texto constitucional fala apenas em restituição da quantia paga, questionamentos acerca da constitucionalidade da cobrança complementar foram trazidos à discussão judicial.

Ao analisar a questão, o STF, através do julgamento do Agravo Regimental e Recurso Extraordinário n. 1.097.998/MG, sinalizou como devida a complementação:

 

Agravo regimental no recurso extraordinário. ICMS/ST. Diferença entre o valor efetivamente designado e a quantia presumida do tributo. Complementação. Orientação do RE nº 593.849/MG-RG. Decreto Estadual nº 38.104/96 e do RICMS/96. Violação reflexa.

  1. Em respeito à vedação do enriquecimento sem causa, deve-se complementar o ICMS diante da existência de diferença entre o valor do tributo designado no momento do cálculo do ICMS/ST e o montante efetivamente praticado na relação jurídica tributária, conforme orientação firmada no julgamento do RE nº 593.849/MG-RG.
  2. É incabível, em sede de recurso extraordinário, reexaminar o entendimento do Tribunal de origem acerca da aplicabilidade, no presente feito, do Decreto Estadual nº 38.104/96 e do RICMS/96 para fins de complementação do recolhimento do ICMS em substituição tributária. A ofensa ao texto constitucional seria, caso ocorresse, apenas indireta ou reflexa, o que é insuficiente para amparar o apelo extremo.
  3. Agravo regimental não provido.
  4. Majoração da verba honorária em valor equivalente a 10% (dez por cento) do total daquela já fixada (art. 85, §§ 2º, 3º e 11, do CPC), observada a eventual concessão do benefício da gratuidade da justiça.

(RE 1097998 AgR, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 07/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 04-09-2018 PUBLIC 05-09-2018 – grifo nosso)

 

Neste caminho de busca por arrecadação, as recentes alterações promovidas pela Lei/RS n. 15.056/2017 e pelos Decretos Estaduais/RS n. 54.308/18 e n. 54.490/2019 na legislação tributária do Estado do Rio Grande do Sul, criaram a hipótese de responsabilização do contribuinte substituído pelo pagamento de complementação do ICMS devido na sistemática da substituição tributária, quando o preço praticado na operação a consumidor final seja superior à MVA utilizada no cálculo do imposto devido no regime de ST. Segundo a legislação citada, o contribuinte substituído varejista deverá apurar mensalmente o recolhimento a menor do imposto, registrando estas informações na EFD e na GIA, procedendo à complementação, quando apurado saldo a pagar do imposto.

 

2.1. Questionamentos sobre a legalidade da complementação do ICMS

 

A forma com a qual foi implementada a complementação do ICMS no Estado do Rio Grande do Sul não está livre de críticas.

A complementação do pagamento do ICMS no Rio Grande do Sul, tal qual inicialmente regida pelo Decreto n. 54.308/18, caracterizava-se, na verdade, como um novo tributo, uma vez que não permitia a apuração de saldo apurado no Ajuste do ICMS/ST com o saldo do ICMS próprio, calculado a partir das operações como mercadorias não sujeitas à ST.

Esta irregularidade foi parcialmente sanada com a edição do Decreto n. 54.671/19, que modificou o art. 25-C, II, do RICMS/RS. Segundo a nova disposição, ao final de cada período de apuração, deverá ser deduzido do montante do imposto efetivo o montante do imposto presumido. Assim, “o saldo negativo constituirá valor a restituir, que poderá ser utilizado para compensar com saldo devedor do imposto de responsabilidade por substituição tributária ou com saldo devedor do imposto próprio, se houver.”

Realizada a compensação, ainda restando saldo de ICMS ST, este poderá ser transferido a outro estabelecimento do mesmo contribuinte localizado neste Estado, ou para os períodos seguintes.

Em que pese seja um avanço, com relação ao Decreto n. 54.308/18, o Decreto n. 54.671/19 ainda se mostra excessivamente oneroso ao contribuinte, uma vez que determina que, caso o contribuinte tenha recolhido imposto a menor, deverá efetuar o pagamento da diferença. Por outro lado, se o contribuinte tiver sido onerado a maior pela sistemática da ST, não haverá devolução em espécie do ICMS-ST recolhido a maior, mas apenas reconhecimento do direito creditório, o que nega vigência da garantia constitucional de “imediata e preferencial restituição.”

Cria-se, assim, uma situação deveras gravosa, tendo em vista que o contribuinte que praticar venda a consumidor final com preço inferior ao presumido terá que se conformar com o crédito escritural que, se não tiver débitos próprios de ICMS ou saldo devedor de ICMS-ST, de nada lhe servirá.

Não há dúvidas, portanto, de que as alterações no RICMS/RS não representam um simples ajuste de contas entre as diferenças do preço presumido e praticado, mas podem resultar em uma majoração velada do ônus tributário e uma transgressão do entendimento esposado no julgamento do RE n. 593.849/MG.

A compensação, da forma como está sendo exigida, não se trata da promoção de uma condição de equiparação entre fisco e contribuinte, como consequência do Princípio da Isonomia. No caso do Decreto, o contribuinte é posto em insofismável disparidade perante o Fisco, ao ter negado o direito constitucional de restituição imediata e preferencial.

 

2.2. Situação atual do Rio Grande do Sul

 

Sendo a complementação uma discussão recente, é evidente que muitos ajustes ainda se fazem necessários. Assim sendo, medidas estão sendo tomadas para evitar que a busca pela devida compensação acabe por onerar excessivamente o contribuinte.

Uma das alternativas foi o chamado Regime Optativo de Tributação da Substituição Tributária (ROT-ST).

O contribuinte optante pelo ROT-ST fica dispensado do pagamento complementar do imposto, desde que se comprometa a não exigir restituição, naqueles casos em que a venda ao consumidor final for realizada com preço inferior à base de cálculo.

Este Regime foi autorizado pelo Confaz através do Convênio ICMS nº 67/19. No Rio Grande do Sul, foi introduzido no RICMS através do Decreto n. 54.783/2019.

Neste primeiro momento, o Regime é aplicável somente aos contribuintes dedicados ao comércio varejista de combustíveis (CNAE 4731-8/00), implicando na não exigência do contribuinte substituído participante do ROT ST Combustíveis o imposto correspondente à complementação do ICMS retido por substituição tributária.

Em contrapartida, o contribuinte substituído participante do ROT ST Combustíveis não poderá utilizar qualquer crédito ou exigir a restituição do imposto, correspondente à diferença do ICMS retido por substituição tributária, e deverá renunciar, de forma expressa, irrevogável e irretratável, a qualquer discussão, administrativa ou judicial, relacionada à diferença entre a base de cálculo utilizada para o cálculo do débito de responsabilidade por substituição tributária e o preço praticado na operação a consumidor final.

Além disso, as empresas que optarem pela ROT ST também devem cumprir a obrigação acessória de participar do Programa de Fidelidade NFG – Varejo de Combustíveis.

Na prática, o ROT ST retorna a relação tributária ao status anterior ao julgamento do RE n. 593.849/MG.

Como principal vantagem, a medida desonera o contribuinte do controle e recolhimento da complementação do ICMS-ST antecipado. Como principal desvantagem, a empresa que aderir estaria abrindo mão de créditos tributários reconhecidos em norma constitucional.

É claro que nem toda empresa teria, de fato, créditos a recuperar. Desta forma, o ROT ST se mostra atrativo às empresas que possuem preço ao consumidor final superior a base de cálculo com margem presumida.

Em que pese, por ora, apenas o setor de combustíveis possua a opção de adesão ao ROT ST, o Governo do Estado já sinalizou a intenção de regulamentar este regime para os setores do varejo.

Trata-se de uma solução necessária, tendo em vista que uma decisão que visava a facilitar a vida do contribuinte, pacificando a forma pela qual deveria se dar a garantia constitucional de restituição dos valores recolhidos a maior via ICMS ST, acabou, na prática, gerando ainda mais ônus e complicações ao contribuinte.

Não se fala aqui apenas em um ônus financeiro, mas também no ônus do controle dos créditos e dos débitos suplementares. Muitos contribuintes, em especial os de menor tamanho, tem enfrentado dificuldades na realização deste tipo de controle.

Sem falar na própria volatilidade das normas. O Decreto n. 54.308/18 foi publicado em 07 de novembro de 2018. Posteriormente, já em 14 de junho de 2019, pois meses depois, foi editado o Decreto n. 54.671, com alterações significativas na forma de manejo dos créditos. Já o ROT ST Combustíveis, foi instituído em 02 de setembro de 2019.

O contribuinte necessita, acima de tudo, de segurança jurídica. Tal objetivo não será alcançado com uma sequencia interminável de decretos que transformem o RICMS/RS em uma concha de retalhos.

Eventual alteração normativa deve ser debatida com os setores da sociedade, de modo a evitar que as novas medidas acabem por criar ainda maiores dificuldades. Isso também é importante para que seja possível a existência de uma norma durável, do ponto de vista temporal.

Sucessivas alterações via decretos acabam por prejudicar a capacidade de planejamento das empresas, criando contingências que poderiam ser evitadas. Da mesma forma provocam judicialização desnecessária das relações tributárias, de modo que a própria Administração Pública acaba por deixar de arrecadar no momento que deveria.

Um sistema jurídico coeso e estável é essencial para que se tenha as condições de calculabilidade e previsibilidade necessárias à retomada de investimentos. Sob essa perspectiva, é evidente que Estados que regulamentem de forma racional a cobrança do ICMS ST adquirem atratividade com relação aos seus pares federativos com normas melindrosas.

Rafael Korff Wagner
Advogado Socio da Lippert Advogados.
Membro da Divisao Juridica da Federasul, onde coordena a área tributaria.

Luiz Edmundo Kielbovic
Advogado Associado da Lippert Advogados.

PUBLICADO EM: 29 de novembro de 2019